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Manhãs de setembro: série protagonizada por Liniker retrata uma humanidade que parte do Brasil não conhece e não quer conhecer

Por Rafael Barbosa

Reprodução internet


Vi com atraso a segunda temporada de "Manhãs de Setembro". E com mais atraso ainda publico este post, que era para ter saído há várias semanas. A nova leva de episódios foi disponibilizada no último 23 de setembro. 

Mas mesmo atrasado, não poderia deixar de publicá-lo, já que a série, original do Prime Vídeo, é uma das melhores produções nacionais e uma das minhas favoritas.

Isso se dá por muitas razões, mas sobretudo pela presença estrelar de Liniker como a protagonista da obra. 


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A cantora - talvez a voz mais potente que temos no momento e que ganhou recentemente um Grammy latino na categoria de melhor álbum de música popular brasileira, sendo a primeira artista transexual da história a levar o prêmio para casa - mostra a sua faceta de atriz e deixa evidente que a sua luz brilha em tudo o que faz. 

Novos conflitos e novos personagens

O segundo ano continua a acompanhar a jornada de Cassandra - personagem de Liniker - mulher trans que vê a sua vida virar do avesso com a descoberta de que tem um filho de dez anos. Gersinho (Gustavo Coelho, menino de talento gigante) é fruto de uma relação casual que ela manteve com Leide (Karine Teles), antes de dar início à sua transição. 

Além de aprofundar mais as relações já estabelecidas no primeiro ano - com destaque para a cuidadosa construção de afeto entre Cassandra e o filho -, os novos episódios trazem outros personagens e revelam mais do passado da heroína.


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Cassandra volta para sua cidade natal e reencontra o pai, Lourenço - interpretado por um Seu Jorge que, com pouco texto, entrega mais uma interpretação espetacular - pai esse que ela não via há anos e com quem a relação é bem difícil. 

A protagonista também se vê diante de lembranças dolorosas: o preconceito da cidade e o abandono de sua mãe, por quem sua admiração começa a desmoronar. 

Revi todos os episódios da primeira temporada antes de dar play na segunda. As duas casam perfeitamente bem, mantendo uma unidade narrativa. 

Por outro lado, essa experiência de ver os onze episódios juntos confirma a sensação de que os primeiros cinco, lançados no ano passado, foram só um aperitivo de uma história que ainda tem muito a dizer, o que faz com que esse "hiato" grande entre uma temporada e outra - apesar de ser o padrão do streaming - seja muito custoso para quem é fã da série. 


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Mas não quero aqui falar sobre o grande acerto que é a produção em termos técnicos: roteiro, direção, fotografia, locações, cenários, trilha, interpretações, etc. Os melhores críticos e analistas de dramaturgia e audiovisual já o devem ter feito. Só o que digo é que tudo é muito caprichado.

Trata-se dessas obras que dão gosto de ver e que trazem um orgulho danado em saber que foram feitas no nosso país. 

O que me interessa mais é falar aqui do...

...banho de humanidade que "Manhãs de Setembro" nos proporciona


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A série celebra a diferença, a aceitação e o afeto, mas acima de qualquer coisa, ela é sobre o povo. O real povo brasileiro, aquele que geralmente não é visto e nem considerado.

O povo que luta, que trabalha duro, que passa perrengue, que enfrenta os mais diversos apuros relacionados à grana e à família, mas que mesmo cheio de dores, cultiva certa alegria e esperança.

É sobre a turma que não dispensa uma cervejinha, uma farra, uma boa música, um café na padaria, um riso frouxo e a alegria dos encontros. E que comete seus pecados.  

É o povo sem a hipocrisia que nos assola.  


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A narrativa é bastante realista. Abre mão do romantismo e de qualquer idealização. Há inclusive certa crueza em muitas cenas. Até por isso, os personagens são extremamente verdadeiros e reconhecíveis...

...tipos complexos e contraditórios, mas todos passíveis de nossa empatia

Cassandra é a nossa heroína e a gente consegue se identificar com a mulher forte que ela é, que batalha em cima de uma moto para conseguir pagar as contas e concretizar a sua independência, mas sem deixar de sonhar com os palcos. No entanto, há momentos em que ela soa egoísta, principalmente na forma insensível com que muitas vezes trata Gersinho. 

É compreensível tudo o que ela precisou passar para conquistar o pouco que tem, o quanto ela já foi invalidada enquanto mulher e ser humano e o quão complicado é criar qualquer tipo de vínculo com um filho que até então ela não sabia que existia e que não desejava ter. Mas não deixa de ser desconfortável as cenas em que ela trata uma criança com dureza ou indiferença. 


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Aperta o peito ver a carinha do menino a cada rejeição. A gente quer abraçar  Gersinho o tempo todo. 

Já Leide - atuação magistral da gigante Karine Teles - é antes de tudo uma sobrevivente. É dela algumas das cenas que mais comovem.

Ela é batalhadora, tem um coração enorme e luta por aquele filho com unhas e dentes. Mas é também escolada na malandragem, tem uma moral elástica que não a impede de afanar roupas doadas à igreja para poder vender e levantar dinheiro, por exemplo. Além de tudo ela é espaçosa, folgada, um tanto irresponsável e que nos primeiros episódios não faz questão de disfarçar sua transfobia. 


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Mas o mais bonito da série é ver nascer o carinho entre Cassandra e Gersinho enquanto eles tentam entender que tipo de relação podem ter um com o outro, ou ver a mesma Leide preconceituosa do início, defender Cassandra da violência do playboy transfóbico, com direito a dedo do meio e tudo. 

Apesar da escolha pelo realismo nas situações abordadas, a série não abre mão da delicadeza e do lúdico

É o maior barato acompanhar Cassandra interagindo com a voz de sua consciência, ou melhor, a voz de Vanusa, sua ídola. Jeito criativo de aproximar a personagem do público e que nos dá o luxo de apreciar Elisa Lucinda atuando só com a voz. 

Além de tudo, uma série que tem Liniker como protagonista, não poderia abrir mão de momentos de pura poesia e música, como na cena linda em que Cassandra canta "travessia", do grande Milton Nascimento, ao som do violão de seu pai, nada menos que Seu Jorge, outro grande músico. 


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Entre um silêncio e outro, através da canção, pai e filha dizem muito sobre o que sentem. 

Música, aliás, não falta. Liniker entoa alguns dos maiores clássicos gravados por Vanuza. Além de "Travessia", ela canta também "Paralelas", "Como vai você" e a canção que serviu de título para a história (que eu aprendi a cantar rapidinho e que não sai do meu aleatório no app). 

"Manhãs de Setembro" é cheia dessas singelezas. Mesmo que a série toque em assuntos sérios e delicados e que tenha suas doses de melancolia, ela não deixa de cultivar a leveza. 


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As relações são o seu ponto forte e todas elas são abordadas e interpretadas com muita verdade.  E o mais bonito: 

... A obra reivindica a humanidade para aqueles que uma parcela grande da sociedade se recusa a reconhecer e legitimar


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Na ocasião do último capítulo da novela Pantanal, comentei no meu perfil do instagram que a releitura do clássico de Benedito Ruy Barbosa, assinada por Bruno Luperi, apresentava um dos muitos brasis que grande parte dos brasileiros desconhece. 

"Manhãs de Setembro", mesmo se tratando de uma história urbana e passada na grande São Paulo, - cenário comum da novela das nove desde sempre - também revela um Brasil que as pessoas desconhecem, que não querem conhecer e, o que é pior, que querem aniquilar. 


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A humanidade da série está presente:

  • no grupo de amigas travestis que apoiam umas as outras, constituindo sua própria família;
  • na mãe que ganha a vida nas calçadas e que cria a filha sozinha, sem deixar faltar nada para ela, inclusive amor; 
  • no casal homoafetivo que estende a mão para ajudar o mais necessitado e que na velhice cuidam um do outro com todo zelo e carinho; 
  • no sujeito que decide bancar o seu amor por uma mulher trans, a despeito de todo preconceito e machismo; 
  • naqueles que vivem do mercado informal de trabalho e que precisam matar um leão por dia para poder comer e dormir debaixo de um teto. 

É essa humanidade que o Brasil precisa reconhecer e discutir


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Poder ver essa série é um alento nos dias tão difíceis que o país atravessa, em que fica cada vez mais complicado manter qualquer tipo de fé nas pessoas, como essas que ainda hoje, passados meses da eleição, ainda estão na frente de quartéis pedindo intervenção militar, em nome de sua supremacia. 

Felizmente, no ano que vem, temos a chance de começar a mudar o curso das coisas. Vamos poder defender a família sim, mas todas elas, como as que a série retrata. Vamos poder falar de inclusão de verdade e pensar em um país que tolera e acolhe todas as humanidades. 

Elenco de ouro

Do mais, é importante celebrar o fato de ter a beleza e o talento de Liniker a frente de uma série, assim como as presenças de Clodd Dias como Roberta - melhor amiga de Cassandra e personagem maravilhosa - e Linn da Quebrada como Pedrita, outras duas grandes artistas, carismáticas e potentes. 


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Gostaria de mencionar ainda outros nomes do elenco que, além dos já citados, também brilham muito na série: 

- Gero Camilo e Paulo Miklos encantam com suas atuações sensíveis ao darem vida, respectivamente, a Aristides e Décio, casal maduro que se ama, se cuida e que são os grandes amigos dos protagonistas. 

- Thomas Aquino é o galã da série. Ele faz o Ivaldo, par romântico de Liniker. Um ator de enorme talento, cuja presença em uma obra é sempre garantia de sucesso. Ele está presente em algumas das melhores produções dos últimos anos, em especial no cinema, como os fenomenais "Bacurau" e "Deserto Particular"

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- A pequena Isabela Ordonez, que dá vida à Grazy, amiga de escola de Gersinho, também é um enorme talento - tem uma carinha fofa mas dá o texto feito gente grande. Ela e Gustavo Coelho formam uma bela dupla e são dois astros mirins para gente ficar de olho. Ambos tem futuro. 

- A segunda temporada conta com as participações luxuosas de Ney Matogrosso e Mart'nália. E tem ainda Samantha Schumutz, em um papel bem diferente do que estamos acostumados a vê-la, que passa longe do humor escrachado. Ela faz Ruth, esposa do personagem de seu Jorge e madrasta da protagonista e também está excelente. 


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- Menciono ainda Inara dos Santos como Ivana e Clébia Souza como Irene. 

Já falei deles, mas os dois são tão incríveis nessa série que vale dizer ainda que: 

- Karine Teles, uma das atrizes que mais admiro e que tem tantos papéis emblemáticos e memoráveis, na minha opinião, tem em Leide a sua melhor personagem. Me emocionei muito com ela. 


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- Já seu Jorge, músico de sucesso inquestionável, reconhecido internacionalmente, é também um dos maiores atores que temos. É só assisti-lo na série e depois ver os filmes "Marighella" e "Medida Provisória" e você verá que são três personagens completamente diferentes, mas todos vividos com intensidade e com aquele olhar potente tão significativo. 


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Fica agora a expectativa para a confirmação de uma terceira temporada. E quem não viu, corre ver para ser preenchido por uma porção do que existe de mais humano. 


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Autor: Rafael Barbosa

Do interior de São Paulo, Rafael é formado em Jornalismo pela Unoeste (Universidade do Oeste Paulista) de Presidente Prudente. Atualmente vive no Paraná. Tem paixão pela teledramaturgia, sobretudo pelas novelas que cresceu assistindo.  


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