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Da TV de tubo ao streaming: a permanência de uma âncora de emoções

 Por Fábio Leonardo Brito

Tomei emprestado o título do livro da historiadora Maria Izilda Matos, Âncora de emoções, porque ele me leva a pensar sobre o que pretendo escrever. Maria Izilda analisou como, na primeira metade do século XX, as canções de Antonio Maria, Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues e Vicente Celestino emocionaram quem ouvia as ondas do rádio. De maneira semelhante, me pus a pensar como, na segunda metade desse mesmo século, um outro eletrodoméstico se colocava na sala de estar de alguns brasileiros – poucos, a princípio, mas com uma popularização que crescia a cada década. Um eletro com um grande tubo, que foi ficando cada vez mais fino e portátil, sendo, nos vinte anos que se seguiram à virada do século, substituído muitas vezes pelos práticos notebooks e smartphones.


Muito mais do que sobre técnica, quero falar sobre emoção. A emoção que, em um 2021 marcado pela pandemia de Covid-19, após duas reprises no horário das 21 horas da Rede Globo, uma grande parcela do Brasil parou para ver Regina Casé e Chay Suede, na pele de Lurdes e Danilo, personagens de Amor de Mãe, trama de Manuela Dias, encontrando-se, finalmente, como mãe e filho. A mãe nordestina, saída de Malaquitas para reencontrar seu Domênico roubado na infância, abraçava novamente seu filho. A novela retomava um dos mais primitivos sentimentos da humanidade, o amor materno. Mesmo sentimento que marcou, mais de uma década antes, o reencontro entre outra mãe nordestina, saída de Belém de São Francisco, e sua filha Isabel, nascida Lindalva, também roubada de seus braços. Estavam, finalmente, reunidas em um abraço que valia mais que mil palavras. Susana Vieira e Carolina Dieckmann emocionavam porque, assim como o autor de Senhora do Destino, Aguinaldo Silva, entendiam que entre as incertezas que o passar do tempo trazia, nada era mais forte e verdadeiro do que o amor de mãe. 

Regina Casé e Chay Suede em cena de "Amor de Mãe", 2021/
foto: GShow

Susana Vieira em cena "Senhora do Destino", 2004 / foto: Globoplay

E o tempo, de fato, passou. Não deixa de ser curioso que, no mesmo ano em que completa setenta anos a estreia de Sua Vida Me Pertence, escrita e dirigida por Walter Foster e veiculada pela TV Tupi, Verdades Secretas 2, trama de Walcyr Carrasco dirigida por Amora Mautner, tenha estreado como a primeira novela a ser produzida para uma plataforma de streaming. Os meios de acesso a essa âncora de emoções que é a telenovela mudaram profundamente, tornaram-se mais dinâmicos, deram à parcela do público que pode acessar a Internet e pagar pelo serviço a possibilidade de optar pelo momento em que desejam assistir, mas não retirou dela, a telenovela, seu elã, sua capacidade de mobilizar opiniões, divergências, encontros e desencontros.

Não é injusto afirmar que há setenta anos contamos as mesmas histórias. Porque, afinal, há milênios que as contamos. Quando, em 1916, Georges Polti enumerou as 36 situações dramáticas em torno das quais todas as histórias se organizavam, elas já haviam sido exaustivamente contadas. A vingança do Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas ou da velha senhora de Friedrich Dürrenmatt nos chegou através do Rodrigo de Cavalo de Aço, da Maria Alice de Os Inocentes, da Cláudia de Fera Radical, do Raimundo Flamel de Fera Ferida, da Ana Francisca de Chocolate com Pimenta, da Nina de Avenida Brasil ou da Clara de O Outro Lado do Paraíso. O amor nascido entre membros de famílias inimigas, que William Shakespeare retratou em Romeu e Julieta, veio até nós por meio de Luti e Valquíria de Ti-Ti-Ti, de Leonardo e Marina de Pedra Sobre Pedra ou de Maria Teresa e Santo de Velho Chico. O duplo do qual falou Fiodor Dostoiévski, foi retomado nos sósias ou gêmeos de O Semideus, Mulheres de Areia, Baila Comigo, O Outro, Da Cor do Pecado, Paraíso Tropical e Um Lugar ao Sol. O alpinismo social e a feira das vaidades que William Makepeace Thackerey retratou em sua crônica da elite britânica do século XIX não poderia ter ganho melhor versão do que na crônica da alta sociedade brasileira que Gilberto Braga metaforizou na Maria de Fátima de Vale Tudo ou na Laura de Celebridade.

Tarcísio Meira, José Wilker e Elisângela em "Cavalo de Aço" 1973 /
Foto: Memória Globo

Glória Pires em "Mulheres de Areia, 1993 / Foto: GShow

Ao longo de setenta anos, o gosto e as preferências do heterogêneo público brasileiro mudou. Se, nos anos 1960, impactou ver um Beto Rockfeller que flanava pela praia e falava o linguajar contemporâneo e, na década de 1980, impressionaram as crônicas do cotidiano de Água Viva e Sol de Verão, o público da segunda década do século XXI anseia por dinamismo e representatividade de pautas sociais. Ao mesmo tempo, me espanta notar que a luta da diretora Irene (Yara Lins), personagem da novela Pai Herói de Janete Clair, em 1979, para implantar o tema educação sexual em sua escola encontraria solo semelhante se tal novela se passasse em 2021, tempos em que as questões de gênero encontram em uma parcela da sociedade uma resistência reacionária. Do mesmo modo, a mitificação de heróis e demagogos que Dias Gomes apresentou em O Bem-Amado de 1973 e Roque Santeiro de 1985 também se mostra atual em um Brasil que escolhe figuras patéticas e potencialmente perniciosas para chamar de “mito”.

Paulo Gracindo, Emiliano Queiroz e Lima Duarte em cena de "O bem amado"
1973 / Foto: AcervoGlobo

Yara Lins em "Pai Herói", 1979 / Foto: AcervoGlobo

Da TV de tubo ao streaming, mesmo diante das rupturas, a telenovela continua sendo nossa âncora de emoções. O gênero que há muito se diz que estava em vias de acabar não apenas sobrevive, mas vive e, metamorfoseando, permanece firme e forte. As redes sociais tornaram-se nosso espaço para indagar se vimos a novela ontem – ou a cinco segundos – e conversar sobre a última cena. Personagens transformam-se em memes. Temas são debatidos ou reiterados. Críticas sociais são feitas. E o que é universal segue universal, apaixonando, acalentando e marcando gerações.

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Autor: Fábio Leonardo Brito

Dramaturgo e professor universitário de História. Mora em Teresina (PI). Tem interesses em temas ligados a cinema, música, comportamentos juvenis, teledramaturgia e cultura em geral.

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